O arquiteto e urbanista Jorge Wilheim, em artigo publicado no Estado (Plano Diretor sem revisão, e agora?, 19/2, A2), dá o importante passo de estimular o debate na imprensa sobre a revisão do Plano Diretor da cidade de São Paulo. A questão fundamental está posta por ele: se o Plano Diretor deve ou não ser revisado e, em caso positivo, segundo quais critérios. A revisão do plano é um mecanismo previsto na própria lei. Sua avaliação pode ser facilmente comprovada pelos jornais, que apontam quilômetros de congestionamento ou metros de água em inúmeras enchentes. Isso nos dá a inequívoca medida da necessidade urgente de revisão do plano. Não é necessário ser urbanista para detectar a real demanda por alterações no plano a fim de garantir a qualidade de vida e a sustentabilidade na cidade. As enchentes que afogaram a capital paulista neste verão, por exemplo, demonstram que a impermeabilização de 85% do terreno - permitida pela legislação presente - não é sustentável. Esse porcentual define a parte do terreno construída, e que, portanto, não absorve as águas da chuva. Tal número tem efeito direto sobre as enchentes na cidade.
Outro sério problema do plano em vigor é a autorização gratuita para edificação de até 100% da área do terreno, ou seja, um terreno de mil metros quadrados pode ter até mil metros quadrados de área construída. O Plano Diretor em vigor privilegia a especulação imobiliária ao garantir às empresas ligadas ao Secovi o dobro dos direitos dados aos demais cidadãos, pois permite a edificação do dobro da área do terreno.
Há também que levar em conta os elevados estoques de outorga onerosa - permissões para construir além da área já concedida - utilizados ou ainda por utilizar, de acordo com o plano em vigor. O senso comum de qualquer morador de Moema, por exemplo, despertaria sérias desconfianças de que o distrito não tem condições de suportar a construção de duas vezes a área do terreno, por ser bairro verticalizado, segundo o plano em vigor, mais o estoque de outorga onerosa de construção de190 mil metros quadrados, dos quais menos de 42 mil foram utilizados. O mesmo diria o morador do Butantã, que tem menos de 2% dos 100 mil metros quadrados de outorga onerosa utilizados, ou o cidadão que vive no Tatuapé - em especial, no Jardim Anália Franco -, que, mesmo só tendo 25% dos 350 mil metros quadrados de outorga já comprometidos, tem sérias dúvidas sobre a capacidade de a infraestrutura viária suportar volume várias vezes maior de trânsito.
Uma das teses mais importantes levantadas durante as 40 audiências públicas sobre a revisão do Plano Diretor, realizadas por toda a cidade, foi o norteamento do desenvolvimento segundo a capacidade de suporte. Firmado no conceito de equilíbrio urbano, o desenvolvimento da cidade deve vincular o potencial construtivo de cada área à capacidade de suporte de infraestrutura, calculado por critérios técnicos e objetivos, levando em conta as múltiplas variáveis necessárias à promoção da qualidade de vida.
O plano em vigor foi embasado nas "tendências de mercado imobiliário", segundo afirmação do urbanista Jorge Wilheim em entrevista a este jornal. "Era o instrumento que tínhamos à época e por isso a revisão é necessária. Desde que a capacidade dos transportes seja respeitada", declarou ao Estado em março de 2009. Essa fragilidade técnica é o foco da revisão que está sendo discutida. Sem essa adequação não há como vencer os gargalos impostos à cidade em futuro muito próximo, muito menos desconstruir o caos já instalado.
O que se propõe é que a capital cresça nos próximos anos nas áreas em que a capacidade de suporte esteja comprovada por cálculos técnicos, não segundo os interesses do mercado imobiliário.
A substituição de uma cidade delineada atualmente pelas "tendências de mercado" por outra definida segundo parâmetros sociais, ambientais, de justiça e de sustentabilidade é uma batalha dura, porém urgente. Nos últimos sete anos a cidade, cujo planejamento foi delineado pelo plano que aí está, teve um crescimento de 400 milhões para 460 milhões de metros quadrados de área construída, ou seja, mais de 13%. Crescimento esse concentrado em 12 distritos já saturados e de tendências explícitas do mercado.
Contestada em sua capacidade de debater o Plano Diretor, a Câmara Municipal comprova sua competência por ter apresentado dois dos pontos inovadores do plano em vigor: a criação das Macroáreas e dos Planos de Bairro. Esses dois pontos tiveram grande destaque e enfático debate nas audiências públicas, nas quais ficou clara a necessidade de consolidar e ampliar os dois conceitos.
O Plano Diretor merece o confronto de ideias. Não é possível, nem desejável, garantir a uniformidade de opiniões e comportamentos sobre uma cidade de tal diversidade como São Paulo, principalmente porque se trata de interesses plurais e complexos. A síntese é necessária e, nesse sentido, as reflexões de urbanistas, planejadores urbanos e, em especial, da sociedade são essenciais, pois estimulam o bom debate sobre o que temos e o que queremos. É preciso, contudo, salientar que há limites físicos, geográficos, ambientais, sociais e humanos estabelecendo parâmetros muito objetivos para o futuro da cidade.
A relatoria do Plano Diretor não cairá em nenhuma armadilha, recusando-se de forma veemente a entregar a cidade e o bem-estar de seus cidadãos à sanha do mercado. O relator do Plano Diretor não vai entregar a mercadoria vendida pelo autor do plano em vigor, em detrimento dos interesses maiores da cidade e seus habitantes, por mais acirrada que se torne a "guerra" em torno do futuro de São Paulo.